Autogestão e Autodefensoria.

Os termos, autogestão e autodefensoria (self-advocacy) referem-se ao processo de autonomia e participação de pessoas com deficiência, engajando-se pessoalmente na luta pela defesa de seus direitos, tomando suas próprias decisões a respeito de suas vidas, reivindicando voz e espaço para expressar suas ideias, desejos, expectativas e necessidades. Autodefensoria é, ao mesmo tempo, uma filosofia, um movimento político e um programa de suporte psicoeducacional.

Esse Movimento vem sendo, já há algumas décadas, bastante difundido em muitos países, inclusive no Brasil; no entanto, em muitos segmentos da sociedade ainda é incipiente, ocorrendo de forma esporádica e assistemática. Esse é o caso das pessoas com deficiência intelectual e múltipla, que ainda constituem um grupo tradicionalmente “protegido” tanto pelas famílias como pelas escolas, instituições especializadas e profissionais que os atendem, dificultando a organização de programas voltados à promoção da sua autonomia.

O Movimento de autodefensoria no Brasil teve início em 1986, no IX Congresso Mundial da Liga Internacional de Associações para Pessoas com Deficiência Mental (ILSMH) – hoje denominada Inclusão Internacional –, realizado no Rio de Janeiro, sob os auspícios da Federação Nacional das Apaes. Um dos eventos mais importantes desse congresso foi o chamado “Congresso Paralelo”, do qual participaram mais de 150 pessoas com deficiência intelectual, representando 15 países e falando mais de seis idiomas diferentes.

Os que tiveram o privilégio de participar desse evento experimentaram uma mudança radical de perspectiva, na medida em que, pela primeira vez, paramos para ouvir efetivamente o que essas pessoas tinham a dizer sobre si mesmas, quais as questões que as afligiam e que estratégias utilizavam para lidar com suas dificuldades. Desde então, essa proposta vem, aos poucos, se difundindo em nosso país, sobretudo pelo trabalho pioneiro da Federação Nacional das Apaes. Porém, se tomarmos o universo das pessoas com deficiência intelectual e múltipla no Brasil, suas famílias e os milhares de profissionais que com elas trabalham, verificamos que os conceitos de autogestão e autodefensoria ainda são muito pouco conhecidos, e menos ainda implementados como programa familiar e/ou institucional.

Mais ainda, a própria noção de que indivíduos com deficiência intelectual e múltipla possam “falar por si” e “tomar suas próprias decisões” nem sequer faz parte do universo conceitual da maioria das pessoas, sejam elas familiares, profissionais ou a sociedade em geral. E, infelizmente, não existe, também, no imaginário dos próprios indivíduos com deficiência.

De fato, a visão popular – assim como a “científica” ou clínica – que se tem sobre uma pessoa que seja diagnosticada como tendo uma deficiência intelectual é de alguém incapaz de aprender, que não tem controle sobre seu próprio comportamento, sem condições de viver de forma independentemente no dia a dia, e que, portanto, necessitará de assistência direta de profissionais e proteção da família durante toda sua vida.

Isso é um mito. Certamente pessoas com deficiência intelectual e múltipla terão muita dificuldade em aprender pelos métodos tradicionais, poucas alcançarão os níveis mais altos de escolaridade, ou chegarão a ocupar uma posição de destaque no mundo profissional. Mas isso não significa, de forma alguma, que, se devidamente orientadas, elas não possam ter uma vida autônoma, produtiva e feliz.

Esse é o ponto principal que precisa ser compreendido. A deficiência é uma condição orgânica, que traz dificuldades e limitações, maiores MANUAL AUTOGESTAO.indd 10 26/10/15 17:30 11 ou menores, para o desenvolvimento da vida acadêmica e social do indivíduo, dependendo do seu grau de comprometimento. Isso é fato. Porém, é fato também que o grau de desenvolvimento e maturidade que uma pessoa – tenha ela uma deficiência ou não – será capaz de atingir não depende unicamente de fatores internos, mas, sobretudo, do tipo de oportunidades que ela terá em sua vida.

E que desenvolvimento ou projetos existenciais poderão ter seres humanos que, desde a infância, foram socializados para a incapacidade, a restrição e a dependência?

A verdade é que raramente é dada às pessoas com deficiência, e especificamente àquelas que têm deficiência intelectual e múltipla, a oportunidade de aprender a se impor no mundo, a expressar seus sentimentos e desejos, a se arriscar e lutar por aquilo que almejam ou em que acreditam. Não se transmite a elas a ideia de que são capazes de tomar decisões a respeito de seu destino, e a assumir responsabilidade sobre si mesmas e suas escolhas. Muito menos lhes são dispostos os meios para tal.

Aí elas continuam caladas no seu canto, passivamente recebendo o que lhes é oferecido pelo conjunto de pessoas – profissionais e familiares – que atuam como intermediários em sua relação com o mundo. Cristaliza-se, assim, um círculo vicioso: não se dá espaço para o indivíduo com deficiência falar – ele fica calado –, e nós continuamos falando por ele, pois ele “não tem nada a dizer”!

Atualmente, a inclusão social e educacional de pessoas com deficiências é a palavra de ordem, sendo eixo prioritário de políticas públicas, ações afirmativas, projetos político-pedagógicos e programas de atendimento a essa população. No entanto, todos sabemos que a inclusão, na prática, está longe de se tornar uma realidade, mesmo nos países mais desenvolvidos.